segunda-feira, 19 de outubro de 2009

A curta história de Lynn

Toda vez que eu olhava para ele, me intrigava o fato dele ter cor de chocolate. Durante nossas corridas atrás de bola ou no pega-pega, nossos braços se esbarravam e, por alguns instantes, via-me cheirando ou provando o suor, para ver se ele era todo chocolate mesmo. Ou feijoada. Ou melado. Não pensava nisso à toa: eu era magro, muito branco, olhos fundos, com cabelos que escorriam pela minha cabeça enorme. E cheio de vermes. Chamavam-me Noah Minhoca.

Todos os dias, depois do almoço, Lynn saía batendo em nossas portas avisando: “Vamos vê-lo! O ônibus está vindo!”. Era a única linha que passava por nosso bairro. Grande, vermelho, barulhento e repleto de senhores e senhoras respeitáveis. Sentávamos na calçada, em ordem, eu, Lynn (e seu apetitoso braço de chocolate), Crosby, Dante, Raymond e Alvin. E quando passava por nós, acenávamos freneticamente, chamando a atenção dos passageiros, que sorriam curiosos, e do motorista, que acenava buzinando. Neste momento, Lynn ficava quieto. O ônibus se aproximava, ele levantava, abaixava as mãos e contemplava o veículo, murmurando muito baixo: “Cuidado... Cuidado... Cuidado...”. Depois, juntava-se a nós para contar as tragédias.

Ele falava bastante sobre essas tragédias, parecia com nossas mães, só que marrom e de boné. Na verdade, ele era o porta-voz da turma, andando na frente, sempre falando. Nas tragédias, fazia questão de ser detalhista. Sempre muito alarmado nas brincadeiras, Lynn não subia em árvores (“Minha prima quebrou todos os dentes numa queda”), não entrava em rios (“Conheci um rapaz que morreu afogado”), não brincava na chuva (“e se um raio me pegar?”), mas, sobretudo, Lynn não corria no meio da rua. De jeito nenhum.

Aos 4 anos, viu sua irmã ser atropelada por um ônibus. Quando nos contou, sonhei durante uma semana com a cena que ele não hesitou em detalhar. Sempre nos avisava, com aquela voz de bronca: “Olha o carro... Não vai agora...”. Ou gabava-se mesmo: “Nunca nenhum carro me pega, pois sou menino bom e brinco sempre na calçada”.

Se isto aborrecia? Sem dúvida. Quando Lynn almoçava em casa, mamãe falava: “Que garotinho obediente... Toma sopa e sabe que legume faz bem”. Eu rangia os dentes de ódio, perguntando onde diabos haviam colocado as crianças normais que comem doces e correm no meio da rua.

Estávamos até acostumados, mas a falastrice dele já enchia naquela hora depois do ônibus. E decidimos um dia não dar mais ouvidos a Lynn. Quando o garoto percebeu que não tinha mais em quem dar broncas, calou-se e foi para um canto. Eu, do gol, percebia os olhos muito atentos que ele colocava na bola. Naquele instante, enquanto pensava me divertir com os amigos, vi que criança é cruel sem querer. Mais tarde, algumas crescem, colocam os freios, depois percebem que não precisam de freios e se tornam adultos cruéis por esporte mesmo...

Em alguma hora daquele jogo, tão alegre e sem regras, a bola foi parar na rua. Todos no campo pararam, como que esperando aquela vozinha fina mandar-nos ficar em segurança na calçada. Para a nossa surpresa, nosso guardião foi atrás da bola. Com os olhos incrédulos, acompanhamos os passos seguros e pomposos de Lynn para pegar a bola. Como num filme, ele abaixou, pegou a bola e olhou em nossa direção com um sorriso que na hora me lembrou um filete de marshmallow.

Fomos interrompidos por um barulho de pneus.

O ônibus havia se atrasado naquele dia e Lynn estava com a bola nas mãos. No meio da rua.

Lembro de ter visto de relance o lençol branco manchado de sangue que cobria o corpo do menino de chocolate. Curiosos foram mais perto para ver. Ficamos afastados da rua, sem coragem para ir até lá. E foi assim desde esse dia. Não brincamos mais de bola.

Encontrei pela vida muitos outros amigos que me davam broncas, ou que se pareciam, tinham cheiro ou até gosto de chocolate. Mas, com lágrimas muito salgadas, lamento nunca mais ter encontrado um amigo que não gostava de doces e não corria pelas ruas quando criança.