terça-feira, 24 de setembro de 2013

Céu de ternura


Maria Antônia divertia-se muito no parque. Admirava as crianças com brinquedos caros que sujavam na areia, invejava os que ostentavam guloseimas de parque nas mãos, sorria discretamente quando um sorvete caía na areia... Não gostava de brincar com os outros. Às vezes ficava triste por ser tão pequenina e sentia os olhos encherem d’água quando os colegas riam de seu tamanho. Ali no parque, ela observava todos de cima do banquinho. Podia brincar que era a chefe de tudo e que poderia prever o que acontecia. Como o pipoqueiro que chegava antes do menino de blusa xadrez. Ou o ônibus, que trazia a velha senhora e a netinha de cabelos crespos. “Parece uma nuvem”, sempre pensava. Poderia prever a melodia que saía dos autofalantes.  E, principalmente, prever aquela hora da tarde.
Era um sorriso gigante quando ouvia aquela moça que adotou como mãe chamar: “Hora de ir!”. Mal continha o pulular do coração dentro do peito de boneca.  Sentia que não ia dar conta da felicidade que era segurar a mão para a moça altíssima e elegante que sempre a olhava com ternura. Pensava naquela frase de filmes que não sabia exatamente o que significava. “Me concede a honra desta dança?”. Sabia que era uma boa frase pra pensar naquele momento.
O bracinho curto se esticava “do tamanho do mundo”, enquanto os pés mal tocavam o chão. E quando tocavam, era tempo de dar o impulso que Maria Antônia aguardava a tarde inteira, o impulso que a fazia levitar até à cintura da mãe, que a segurava forte por um tempo no ar, pra depois continuar os passinhos apressados, entre  impulsos que empurravam o chão e a faziam ir cada vez mais alto.
As gargalhadas eram fáceis. De vez em quando, ao chegar no alto, olhava pro chão e sentia-se maior. Tudo era esquecido: os sorrisos de deboche, as limitações, a rejeição... Maria Antônia podia voar.
E voava em céu de brigadeiro, entre nuvens de algodão e glacê que um dia comeria sem restrições. E ainda tinha um caminho de casa inteiro para sonhar...
Maria Antônia era grande.              


terça-feira, 27 de agosto de 2013

A maior sensação do mundo

Pascoal morava só. Tinha um violão. Era o melhor violão do mundo. O som que fazia juntava-se à harmonia da solidão uníssona de uma cobertura daqueles bairros de classe média alta. Almoçava fora todos os dias. Restaurantes diferentes, vinhos refinados. Eram os mais caros, que traziam vigor e frescor ao seu paladar.Os livros de culinárias serviam apenas para a decoração. Aliás, o “apê” era decorado com mobília assinada e escolhida a dedo pela maior autoridade em design europeu do mundo. Seguia o I-ching na disposição dos móveis (que não é europeu, mas tudo o que é oriental ecoa o que é de melhor no mundo). Era o melhor apartamento do mundo. Tinha um emprego vitalício. Trabalhava as oito horas diárias exigidas pela lei trabalhista. Até preferia. Era perfeita a contagem dos seus dias. Calculava os quinze minutos pra ir, pra voltar, os sete da parada do café, mais oito minutos dos cumprimentos e acenos (Pascoal era simpático). Tudo contado, perfeito, cronometrado, simétrico, direito, correto, harmônico, regular. Ainda sobrava tempo para os lazeres da vida. Os melhores filmes, melhores livros, melhores canções. Era o melhor momento de todos. E controle era a melhor sensação do mundo. Certa vez, ao comprar seus tênis na melhor loja do mundo para fazer o melhor dos exercícios, deparou-se com uma cena que paralisou o sorriso plácido: uma moça chutava o caixa eletrônico, numa tentativa frustrada de recuperar algum dinheiro que havia perdido em algum mau uso da máquina.

 Mariana mal podia acreditar no que seus olhos viam na tela : “SALDO INSUFICIENTE”. Era, com certeza, o pior dia de todos. Não bastasse o despejo, não bastasse o emprego, as cordas do violão quebradas, a vida em pedaços, o coração em frangalhos... Era o pior momento de todos. E descontrole era a pior sensação do mundo. Na melhor das intenções, Pascoal ofereceu café, sorriso e companhia. Mariana aceitou, pois, na pior das hipóteses, sofreria por amor novamente. E o que seria novidade?

 Pascoal se rendeu ao ângulo perfeito do abraço de Mariana; os braços se encaixavam no torso de uma forma que nunca mais sairiam do lugar enquanto ele não pedisse. Mariana fotografava mentalmente o nariz vermelho de rinite que Pascoal tinha nos dias de chuva, trazendo à memória toda a ternura das lembranças de infância recheadas de maçãs do amor e corações vermelhos do caderno. Pascoal sentiria no perfume dela o cheiro exato de dama da noite. Ela se derreteria pelo sorriso torto de dentes pequenos dele. Ele amava o bife ao ponto que ela fazia. Ela se deliciava com o leite empelotado que ele não sabia fazer. Pascoal achava que Mariana era a mulher mais bonita do mundo. Mariana achava que Pascoal era o pior violonista do mundo. Mas era o mais charmoso, o mais terno, o que fazia a melhor sopa e o que mais se importava. Mariana era a mulher mais feliz do mundo, tinha o melhor namorado de todos. Nunca havia sido tão feliz em meio tanta imperfeição. Estava apaixonada. E esta era a melhor sensação do mundo.

Já Pascoal viveu a pior crise de ciúmes quando ela atendeu àquela ligação. Sentiu que era o último dos homens quando um dia a fez chorar. Sim, Pascoal era o pior mentiroso do mundo quando quis esconder seu amor por Mariana. Nunca havia sido tão miserável em meio a tanta perfeição. Estava apaixonado.

 E esta era a pior sensação do mundo.