sábado, 25 de agosto de 2012

O dezembro de Deusalina

Lavar, passar, lavar. Este foi o ano de Deusalina. As mãos calejadas sabiam do sucesso que foi o ano. Deusalina era campeã. Naquela manhã, sairia para comprar sapatos novos para Arlindo, calças para Arthur, saias para Argélia, cuecas para Amiraldo, e um terno novo para Artinson, que tinha terminado o supletivo. Para ela, compraria um chapéu. Nunca na vida tinha usado um chapéu para ir à missa, como Judite e Elisa usavam. “O sol castiga a pele da idade”, elas diziam. Deusalina pensava que a vida já lhe castigara bastante a pele. Mas que um lindo chapéu com flores na lateral seria um bom presente de Natal para quem lava e passa pra fora. Deusa, como lhe chamava uma das clientes, pegou o ônibus e foi às compras no centro da cidade. O dia sombreava bonito em suas feições cansadas, mas muito bem feitas. Era uma mulher bela, meio curva do trabalho de anos, os cabelos brilhosos e de boa conversa. Antes de se casar com Benedito, já tinha algumas promessas de casamento de outros rapazes da cidade que deixou para viver na capital. Logo que Benedito se foi, “de males da bebida”, passou a criar os filhos “na beira do tanque”, como gostava de falar. Deusalina andava rápido, com a mesma esperteza que herdara da mãe costureira. Não costurava também por lhe faltar paciência (“cinco filhos, minha rica irmã...”) e vista boa. E a passos largos a mulher andava pela cidade, procurando os presentes-prêmios e cuidando para não se atrasar, pois era necessário chegar em casa cedo para preparar a ceia. E ainda tinha a roupa da Drª Suzana pra entregar. Comprados todos os presentes, sentou-se a estação de ônibus para repousar as pernas. Gostava de ver o movimento da cidade nos dias agitados, como a véspera de Natal. Crianças e adultos tinham sorrisos sádicos de desespero por ter, acrescentando ao nublado do dia um significado esquisito. Deusa apenas contemplava. Há anos não tinha um Natal digno, em que poderia fazer compras, gastar e desprezar os pedintes. O ônibus chega à estação. Deusa corre os olhos pelos bancos, procurando as sacolas de compras. Era certo: foram roubadas em um segundo de distração. Um misto de horror e tristeza rasgava o peito da lavadeira do ano. As sacolas eram seu prêmio que mal pode erguer e mostrar. Exceto por uma, esquecida no canto, desprezada pelo ladrão. Lá estava: o lindo chapéu com flores na lateral. Naquele momento, a lavadeira se misturou à multidão. O horror e a tristeza do coração deram lugar ao sorriso tenebroso da vaidade. Deusalina voltou pra casa inebriada pelo espírito natalino.

O maio de Mariana

Mariana vai se casar com Silas em poucas horas e tudo será perfeito. Comprou o vestido em um brechó em Paris e mandou a costureira ajustar. Encomendou o melhor buffet da cidade , com chef premiado.Os sapatos serão assinados por um estilista renomado.Cabelo e maquiagem escolhidos a dedo, com semanas de teste. Também testou a cerimonialista, os padrinhos, o pajem e as damas de honra (trocadas três vezes!). Tudo saiu do jeito que planejou: floristas, orquestra, padre italiano, igreja tradicional e disputada, comida deliciosa, bebida para descontrair. Uma pista de dança para os descontraídos. A música do casal, ela mesma escolheu. Viu num filme e achou que combinaria com o estilo de festa que determinou. Mariana ia se casar com Silas.O noivo de seus sonhos.Funcionário federal, bonito, inteligente e de ótima família. Os sogros a adoravam; diziam que ela havia caído do céu. Mariana era um anjo, de fato. E ela sabia que era. O álbum de fotos seria quase uma obra de arte. Pediu ao fotógrafo que captasse o amor verdadeiro nos olhos do casal e que “por favor, fotografe meu lado fotogênico, o direito”. Mariana esboçava um sorriso angelical diante do espelho. “Perfeito”. Tinha certeza que o vestido lhe cairia bem. Era certo que o véu a deixaria esplêndida. Não, não haveria olhos para outra mulher naquele dia. Era ela. Apenas Mariana. Não tinha notícias de Silas desde a manhã anterior. Achou de bom tom ver o olhar de deslumbramento do noivo apenas no altar. Sabia que o futuro marido teve uma boa despedida de solteiro, do jeito que os preparativos e roteiros de casamentos pediam. E que a amava profundamente. E que era fiel e correto. Calado, de sentimentalidade medida, do jeito que ela sempre quis. “Silas foi a escolha certa”, dizia para o reflexo no espelho, retocando a maquiagem. Chegava a hora. O fim de tarde era bonito; o sol diluía-se nos cabelos cada vez mais dourados da noiva. Admirando ainda o belo trabalho da costureira, mal ouviu os passos apressados por trás da porta. - Mariana?! – era uma voz masculina. - Querido? É você? - ... Não... É o Jorge. Você pode abrir? - Pode entrar. Está aberta. Jorge entrou. Seu rosto estava sem cor. Mariana não percebeu as lágrimas que cobriam o rosto do padrinho. O véu estava caindo por conta do vento que subitamente invadia o quarto. Era necessário ajustar. - Mariana... – Jorge embargou a voz. - Eu sei... O vestido ficou mesmo divino! – dizia ainda para o reflexo do espelho. - Mariana, você precisa se acalmar... A moça virou-se plácida, para dizer que não estava nervosa. Ao se deparar com o rosto desfigurado pela tristeza de seu amigo, não conteve o pânico. - O que aconteceu? - O Silas, minha querida... – e Jorge tentou abraçá-la, num choro silencioso e sentido. A noiva se desvencilhou dos braços do rapaz com fúria, saindo pela porta aos berros. - Ele sumiu, não foi? Cadê ele? Onde está? Os que se reuniam na sala tentaram segurar a mulher de véu rasgado e vestido aberto. -Alguém pode me dizer onde está meu noivo????? E, mal podendo se convencer de que o seu dia havia acabado, sentou-se no sofá para saber do ocorrido. Na madrugada anterior, houve um acidente. A estrada estava em obras e os motoristas deveriam desviar antes do buraco feito para os reparos. Um motorista desavisado não desviou. O carro despencou em um precipício em alta velocidade numa tentativa falha de desviar o caminho... Não houve sobreviventes. Silas não dirigia. Estava no banco do carona daquele carro, que era dirigido por uma mulher. Mariana ia se casar no dia 15 de maio. Mas guardou o vestido, o véu, os sapatos, as lágrimas, o rancor e, bem no fundo da alma, a convicção de que o dia perfeito de seu mês favorito ainda chegaria.

O julho de Juliano

A chuva caía sem dó pela cidade. Não tinha pena dos bueiros entupidos, dos varais de donos desavisados, dos telhados quebrados, das casas sem baldes ou dos passantes atrasados. E, sobretudo, dos sapatos novos de Juliano. - Que bela porcaria. - mal podia acreditar. Era por isso que detestava a chuva. Molhava seus sapatos, pés, calças, panturrilhas, planos... Encharcava de lama sua pasta de documentos, sua carteira vazia e seus sonhos ensolarados. Não gostava de guarda-chuva. O nome do objeto lhe causava asco, revelando o pensamento birrento e pueril. - Pra que diabos eu quero guardar a chuva? E retomava os passos (in)conformados. Tinha raiva das nuvens que embaçavam o raciocínio, fazendo-o apenas lamentar e maldizer os pingos (cada vez menos espaçados) que caíam do céu. - Vou me atrasar para a entrevista. E o que é pior, vou chegar todo molhado. E o ex-futuro-chefe ainda perguntaria: “Você não tem um guarda-chuva?”. Apressando o passo abastecido de ira e orquestrado pelos trovões, Juliano resolveu procurar abrigo até passar o temporal. - Maldita chuva! Que dia péssimo! Pensou na conta de água. Uma ironia. Não tinha dinheiro pra pagar por algo que agora lhe atrasava a vida. Pensou no seu apartamento. Como pagar o aluguel se não conseguir o tal emprego? E, por fim, pensou nos sapatos novos. Era o que matava; puro couro italiano estragado pelas poças d’água. Mas antes que pensasse em algo mais, Juliano ouve o celular tocar. Era a secretária da empresa que o contrataria. “Não haverá mais entrevistas hoje. O carro do nosso gerente ficou preso na estrada por causa do temporal. Entraremos em contato.” -Santa chuva! Juliano caminhava plácido por entre as gotas alegres da garoa marota. Como era revigorante um banho de chuva!