sábado, 9 de agosto de 2008

Aos pedaços, aos pouquinhos.

Via tudo muito lento. As letras dançavam no papel. Estava bem frio. Eu, em passos rápidos, inclinava o corpo pra frente, enrugando a testa bem próxima à carta, como que para prestar mais atenção ao seu conteúdo. Tentando ler em movimento, no escuro. Até me encontrava nas frases, só faltava o sentido delas. Ler mais uma vez no meio da confusão nem adiantava mais.
O corredor de gente não ajudava. Era mais fácil passar esbarrando do que tentar ajudar aquela que se equilibrava no salto apertado com um copo de café numa mão e uma caixa e um pedaço de papel na outra. Resolvi sentar num banco e tomar o café já morno. Naquele exato momento, pude saber a sensação da tal “solidão em meio a tanta gente” que dizem por aí. Finalmente o clichê se cumpria ridículo e literal.
O dia não tinha sido fácil pra mim. Trabalho acumulado, chefe sádico e horas extras. Assim, tive que sair muito tarde e peguei aquele tumulto na saída do prédio comercial. Almocei com a minha mãe e ouvi que estava ficando louca de deixar Juliano vir morar comigo. Juliano... meu novo quase-amor... “Isso não é sério!”, ela disse. Ela me conhece, as mães são assim. Mas ela não sabe muito. Ela não me conhecia como ELE me conhecia. Nem eu, pra falar a verdade.
Estávamos juntos há 8 meses, 3 semanas, 2 dias e 14 horas até a hora daquele café.
Ao chegar do almoço, na agência, Lila me avisou que Juliano tinha passado por lá. “Deixou aquilo ali...”. Havia uma caixa, uma margarida murcha [?] e um envelope em cima da mesa da copa.
Aquilo se tornou um hábito. Desde que nos conhecemos, Juliano ia na agência toda a semana e deixava uma lembrança. “Um pouquinho de mim, pra você sempre me ter por perto.” Assim ele dizia. Bonitinho. Às vezes, eu só lembrava de abrir a caixinha e ler as cartas depois do expediente. Eis um erro possível por meus múltipos defeitos. Um erro que não considero lá tão errado, pois pra mim, a indiferença deve ser justa com todos. Juliano não seria exclusivo... Pois bem, nesse dia, não abri a caixa e muito menos li a carta antes de sair do prédio, às sete da noite.
Ele era intenso. Em todos os sentidos. Chorava alto, tão alto que, às vezes, incomodava. Quebrou uma xícara que eu tinha, uma xícara de um design exclusivo, num acesso de raiva (o único que eu presenciei). Conseguia como ninguém atingir os meus pontos fracos. Sabia o timbre exato do ruído que me irritava ao esfregar os pés no chão molhado. Atacava minhas cócegas no ponto exato: entre as costelas e a bacia, apenas do lado direito. Conhecia todos os detalhes do meu corpo, cada pinta, cada marca; todas as formas de toque que pudessem fazer arrepiar os pelinhos da minha nuca. Desde os primeiros dias, ele já me sabia toda. Sabia diferenciar todos os meus sorrisos. Todas as minhas expressões indiferentes, sarcásticas e raivosas, ele sabia. Assim era Juliano.
Eu não o conhecia tanto. Ou não queria. Ter a sensação de penetrar e fazer parte dos sentidos alheios me angustiava. Todo encontro era perturbador. Me sentia cada vez mais dentro da vida de Juliano. Resolvi então que não fugiria mais uma vez. Era o quase-amor mais longo de todos que já tive. Devíamos morar juntos. Propus, ele aceitou e espalhou as coisas dele dentro do meu mundo.
Infelizmente, a sensação de me misturar a Juliano incomodava sempre. Não era eu. Então, decidi que não o conheceria mais. Juliano seria mais de um pra mim, de forma que nunca conseguisse conhecê-lo de verdade. Todas as vezes que nos encontrávamos, tentava enxergar outro olhar, ouvir outro tom de voz, outra conversa e sentir outro cheiro, outra sensação na pele. No fundo, sabia que não adiantava, ele sempre estava lá. No rosto, estampava um sorriso (lindo), em paradoxo com o olhar melancólico. Esta imagem era sempre a mesma em todos os Julianos que conheci.
E todas essas sensações foram interrompidas. No café morno como o meu sentimento, sorvi alguns goles amargos até pegar a caixa e ver o que havia dentro. Aos poucos, fui me vendo em pedacinhos guardados: um lenço com meu batom, um lacinho de alguma das minhas calcinhas, um grampo do meu cabelo, o desodorante que deixei junto com a echarpe na casa dele, um post-it verde-limão com as palavras apressadas: “hj saio + cedo. passo aí s der. bj”, um pacote de jujubas pela metade fechado com fita adesiva, meu cd do Cartola (sabia que não havia perdido!) e o único presente que lembro dar e ver ele esboçar o sorriso mais bonito do que todos os que ele tem; um bilhetinho com algumas palavras que escrevi quando esqueci que era nosso aniversário de namoro. Escrevi no barzinho mesmo, num lencinho, depois de umas taças de vinho:
“Feliz esse dia. E todos aqueles em que te encontro e não soltamos mais as mãos. Nem pra dormir. Que venham mais desses pra alegrar minha vidinha assim, sem-sal.”
Sentindo os olhares da multidão me aquecerem no frio que fazia naquele momento, enxuguei as três parcas lágrimas que consegui derramar. Peguei a margarida nas mãos e sorri divertida. Era a margarida mais feia que tinha visto em toda a minha vida. E olhei mais uma vez a carta. Dessa vez, consegui entender. Com a letra bem menos caprichada que das outras que já tinha lido, mas nada comparado ao conteúdo, conheci (ou reconheci?) mais um Juliano naquelas linhas:
“Esta margarida, eu colhi do meu canteiro. Aquele que você achava feio por causa da samambaia. Nesta caixa, está tudo o que seu que você ‘deixou’ ou se permitiu esquecer pelas minhas memórias. Infelizmente, não posso resgatar o que eu deixei com você, pois você me arrancou de mim mesmo. E será bem difícil eu me trazer inteiro de volta.
Parto para o Rio às 4 da tarde. Se quiser mesmo, de verdade, morar comigo pra se entregar de vez (não aos pedaços, aos pouquinhos), eu espero por você no aeroporto. Do contrário, já tirei minhas malas do apê. A chave está com o Mathias.”
Pula uma linha, data, rubrica, algum “p.s.” rabiscado. Acreditei por um momento que fosse um “eu te amo.”
Deixei o vento levar o pedaço de papel, tomei o resto do copo de café e fui atrás. Atrás do Mathias, que ficou com a chave do meu apartamento, claro... Estranhamente, senti que um peso das costas se ia...
Não tenho ainda certeza de que foi um erro ler a carta tarde demais (para Juliano). Só tenho certeza do erro que sou eu.
Boa viagem, quase-amor.

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